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Terra sem mal. – RESENHA BIBLIOGRÁFICA

Por Clasíres, Hélène. São Paulo, Brasiliense, 1978.

Num artigo do dia 13 de abril de 1980, no Shopping News, Fernando Barros nos chamou a atenção sobre um grupo de índios guaranis que vive na região de Parelheiros, perto de São Paulo.

Segundo o jornalista, estes migrantes perderam tudo menos as tradições. Conservam até hoje, entre outros rituais, a busca da terra sem mal, como parte integrante de uma cosmogonia recebida dos ancestrais, que explica os deslocamentos da tribo.

Talvez por acidente, talvez como conseqüência de preocupações semelhantes, Claudia Menezes publicou, pela Imago, A Mudança, em que examina as transformações na identidade oe um grupo de migrantes quando estes se deslocam de seu habitat, para centros urbanos.

Recentemente, os jornais deram espaço para que se noticiassem um evento bastante peculiar: um camponês paranaense, depois de sofrer muitas agruras, vende tudo, compra dois cavalos, bota a mulher e dois fühos em um cavalo, pega o outro filho monta no segundo cavalo e parte para Minas Gerais.

As três situações narradas são eventos do cotidiano; ocorrem no nosso mundo da vida e, no entanto, ainda são pouco numerosos os estudos que têm sido feitos sobre estas aparentes normalidades. A regularidade destasexpedições atesta sua nomia.

Se, de uma lado, existe um consenso quase que definitivo sobre os fatores exógenos que estão na raiz destas deslocamentos, os textos (não são muitos) que exploram os fatores internos têm tido baixa repercussão.

Parece claro que a pauperizaçâo e a desgraça agrícola podem ser tratadas no plano políticoeconômico que tece a insatisfação. Mas, porque alguns migram e não optam pela marginalidade, não viram assaltantes, como uma parte não-desprezível do quarto extrato? Enfim, o que dá sentido à migração?

Uma resposta a esta última questão só pode ser obtida parcialmente. Jamais poderíamos equacionar todos os fatores internos que tornam plausível a ação de migrar.

Na sociologia compreensiva (Weber, Schutz, Berger, etc.) encontramos algumas regras que nos ajudam a desbastar um pouco mais estes movimentos do mundo do cotidiano.

A sociologia compreensiva, quando delimitou seu campo teórico, propôs seus instrumentos de trabalno e entre eles o de maior peso é a construção típico-ideal.

É aí que se encaixa o testo de Hélène Clastres. È aí que a abordagem da Terra sem mal pode reivindicar seu cantinho na biblioteca do administrador.

Neste livro, Hélène Clastres faz uma análise sistemática, coerente, científica (por que não?) de um dos fatos mais importantes da mitologia guarani. O casal Clastres (o marido Pierre Clastres, autor de uma revolução copérnica na antropologia com seu livro La Société contre L’Etal, faleceu em acidente na f-rança, em meados de 1977) pesquisou durante muito tempo os costumes dos índios do sudoeste brasileiro. Hélène Clastres e Jacques Lizot (este último autor de um brilhante texto sobre os Yanomanis: Le Cercle du feux) trabalharam como antropólogos junto aos Yanomanis no norte do Brasil, divisa com a Venezuela.

A obra possui, portanto, a legitimidade que o trabalho empírico confere na tradição antropológica francesa. O texto, criterioso e exaustivo, ultrapassa o que se espera de um trabalho puramente empírico.

A análise das fontes primárias (documentação sobre o mito da terra sem mal, religiosidade, canibalismo, xamanismo! vai além de uma descrição, propondo relações causais logicamente assentadas.

O que é, afinal, a terra sem mal?

“A terra sem mal é esse lugar privilegiado, indestrutível em que a terra produz por si mesma os seus frutose não há morte” (p. 30).”É o local onde aqueles que bem se vingaram e comeram muitos de seus inimigos vão para trás das montanhas altas e dançam em: belos jardins com as almas dos avós” (p. 30). “É também um lugar acessível aos vivos aonde era possível, sem passar pela prova da morte, ir de corpoeamlam” (p. 31).

A terra sem mal é, portanto, no mínimo, uma profecia que orienta a busca de campos elísios, não assimilável ao paraíso pois pode ser atingida em vida.

Em busca da terra sem mal partiram enormes e numerosos grupos guaranis, muito antes da descoberta da América. O contato com os colonizadores se superpôs a uma matriz de significados (fatores internos) e não determinou isoladamente o deslocamento das tribos.

Assim, enquanto elemento nodal desta matriz de significados a terra sem mal é rica e forte em sentido.

Ao nível do discurso, cabia aos caraís (categoria que não pode ser diretamente associada aos Xamanes) revigorar a promessa: “não cuidem de trabalhar, não vão à roça, que o mantimento por si crescerá, e nunca lhes faltará de comer, as flechas vão ao mato caçar, elas hão de matar muitos dos seus inimigos, cativarão muitos outros para sei em comidos. A vida será longa, as velhas vão se tornar moças, dêem as filhas quem a quiserem”

É no discurso dos caraís que podemos perceber a força da mitologia. A terra sem mal não é um paraíso cristão, e sim um espaço concreto possível de ser alcançado pelos vivos e onde a sociedade se acaba (não é preciso trabalhar, o incesto é permitido, a festa constante).

É desta terra que os caraís são senhores e periodicamente eles submetem os índios aos exercícios de mente e corpo necessários para se chegar à terra sem mal.

Em suma “todo pensamento e a prática religiosa dos índios gravitam em torno da terra sem mal. Uma religião que pode ser dita profética”.

Desde o começo da colonização todo o conte todos os elementos do profetismo já estão presentes: as personagens dos caraís, com sua posição de exterioridade espacial e genealógica: o tema da terra sem mal, o mito da destruição da primeira terra; a crença num cataclisma futuro. Quer dizer que não se trata, em absoluto, de um messianismo que se teria produzido em reação a colonização (p. 51).

O mito da terra sem mal esta na origem de várias migrações. Enquanto construção típico-ideal, ela pode ajudar a compreensão da vida nas organizações privilegiando temas tais como a inserção dos nordestinos no mercado da construção civil, a migração dos bóias-frias, etc.

Em resumo, o texto de Hélène Clastres, distante do tipo de leitura habitual aos administradores, introduz uma nova temática e focaliza a dimensão do cotidiano, a experiência no mundo da vida. É mais um esforço de centrar a ação sobre os agentes sociais.

Embora ainda hoje seja bastante complexa a ligação entre a mitologia indígena e a vida nas organizações modernas, pelo menos de imediato, como sugestão, pode mos lembrar que uma abordagem acionista da teoria das organizações foi tentada por David Silverman.

O que se pretendeu sugerir nesta resenha é que pouca atenção tem sido dada aos problemas e processos organizacionais, pois muito tem sido feito na linha de uma teoria das organizações. O livro de Hélène Clastres ajuda a nos concentrarmos sobre problemas do cotidiano, presentes nas organizações, um deies a migração, embora não tenha dúvidas que este não era o objetivo principal da autora ao escrever o livro.

Simplesmente, conhecer um pouco mais sobre nós mesmos não nos parece nada desprezível. 

Roberto Venosa

 

Fonte: Scielo